120 anos depois da abolição da escravatura
Na fazenda de Cabeceiras, os trabalhadores que eram surpreendidos quando mastigavam cana-de-açúcar ou à caça de pequenos animais, com armadilhas rudimentares, recebiam uma multa de 23 reais, que lhes era descontado no salário. A empresa Jorge Mutrnn LTDA, proprietária de 18.000 hectares no estado amazónico do Pará, só lhes permitia comprar alimentos no armazém da fazenda e a preços astronómicos.
A compra de víveres sobrecarregava a conta do trabalhador. Deste modo, ao chegar ao fim do mês, o trabalhador estava sempre em dívida com a companhia. A única forma de romper o círculo vicioso, também se lhes cobrava pelo alojamento e pelo uso das ferramentas, era a fuga. Mas desde que se instalou o engenho açucareiro, no ano de 2000, apenas 14 dos 536 empregados conseguiram burlar a vigilância dos 'capangas' que patrulhavam o perímetro.
Depois de um complicado processo que se prolongou durante três anos, a justiça pôs fim ao método de "servidão por dívida" que se praticava naquela região. Um tribunal do Pará, ditou uma sentença que ordena a expropriação da fazenda.
É um facto histórico, semelhante à abolição da escravatura em 1888. Com base neste precedente, é possível que o Congresso aprove por fim, a emenda constitucional que permitiria expropriar mediante um processo abreviado, a quem reduza os trabalhadores à condição de bestas.
O veredicto, que também contempla uma indemnização de 800 reais a cada trabalhador, coincidiu com a publicação de um relatório do Ministério Federal do Trabalho segundo o qual, em 2008 foram libertados 4.634 escravos nos diferentes estados do Brasil, sobretudo nos do nordeste e da amazónia.
A quarta parte desse contingente eram mulheres ou crianças, muitos dos quais tinham contraído enfermidades por beber água estagnada ou por falta de higiene. No mesmo período, o Grupo Móvel, um corpo de elite formado por agentes da Polícia e do Ministério Federal do Trabalho, realizou um número recorde de 133 operações.
Os "barões" da cana do açúcar, um produto em alta desde que se desenvolveu a indústria do etanol; os reis da soja ou os contrabandistas de madeiras preciosas não renunciaram nunca à mão de obra escrava.
As incursões do Grupo Móvel nos terrenos protegidos com modernos sistemas de alarme e capangas, armados com armas automáticas, custaram a vida de 24 agentes e de onze funcionários judiciais nos últimos cinco anos. As operações de resgate começaram em 1998 e intensificaram-se com a chegada de Lula à presidência em 2003.
Desde que entraram em acção, os efectivos do Grupo Móvel libertaram 16.708 trabalhadores cativos, ainda resta muito trabalho por fazer.
Estima-se que são mais de 100.000 os brasileiros que vivem em condições similares às dos escravos, 120 anos depois da abolição da escravatura. É caso para se dizer que deixámos lá "boa" semente...mas também é bom começar o ano recordando o muito que há por fazer.