Em África há outro Guantánamo
Só há quatro meses que Salim Awadh Salim voltou a casa. Quando chegou, depois de passar cerca de dois anos detido sem acusação nas prisões do Quénia e da Etiópia, a sua casa no bairro de Mwenbeleza, na cidade costeira queniana de Mombasa, tinha sido saqueada. Com a venda de um carro velho, comprou 300 pintainhos para criar. Ao 37 anos, tem de começar do zero.
A sua mulher, Fatima Ahmed Chande, detida e deportada com ele mas libertada antes, está com a sua família na Tanzânia, de donde é originária. Estava grávida quando os prenderam. Devido ao stress da prisão perdeu o filho.
Não a pode ir ver porque não lhe devolveram o passaporte. E ela nem sequer pode ouvir falar em regressar ao Quénia.
A polícia tinha ordem para não deixar ninguém ver os detidos. Salim e Fatima formam parte do grupo de cerca de 150 pessoas que as autoridades quenianas detiveram em Janeiro de 2007 quando fugiam dos combates na Somália entre a União de Tribunais Islâmicos, de que alguns dos seus membros estão na lista de terroristas procurados pelos Estados Unidos, e os soldados governamentais apoiados por tropas etíopes que tinham entrado no país dias antes.
Transferidos para o comissariado de Nairobi, os detidos foram mantidos incomunicáveis durante semanas, sem acesso a advogados nem familiares, antes de serem levados de volta à Somália e entregues à Etiópia. Ali foram submetidos a tratamentos cruéis, interrogados por agentes do FBI, da CIA e dos serviços secretos de Israel, e privados de contacto com familiares ou inclusive com o Comité Internacional da Cruz Vermelha.
Pouco se sabe deste Guantánamo africano. Os governos implicados têm-se dedicado a negá-lo. Seguem a mesma postura daquele bispo britânico que nega o holocausto.
Salim Awadh Salim dedicava-se a negócios com telemóveis. Foi com a mulher para a Somália tentar a sorte, mas quatro meses depois decidiram voltar. Na fronteira, encontraram um grupo de mulheres e crianças e cruzaram-na todos juntos. Todos foram detidos e levados para Nairobi. Logo, se inteiraram de que nesse grupo estava a esposa de Fazul Abdullah Mohammed, um dos presumíveis terroristas mais procurados pelos Estados Unidos, que o acusam de ser o chefe da Al Qaeda em África, e de estar por detrás dos atentados contra as embaixadas do Quénia e da Tanzânia em 1998.
O Quénia deteve centenas de pessoas que tentavam sair da Somália. A polícia tinha instruções de não deixar que ninguém visse os detidos. Através de pequenos subornos, recarregando os telemóveis dos guardas, foi possível contar-se 150 detidos de 19 nacionalidades.
As condições eram deploráveis. Havia uma mulher grávida de seis meses que tinha sido ferida por uma bala enquanto fugia da polícia antes de ser presa. Nunca recebeu assistência médica.
À excepção de quatro, todos os detidos permaneceram ali para além dos períodos legais que a lei do Quénia permite: 24 horas para crimes menores e duas semanas para delitos graves.
Como a polícia queniana negava ter os detidos debaixo da sua custódia, Kimathi interpôs 34 casos nos tribunais por violação do habeas corpus. No dia da vista, o estado alegou que não podia trazer os detidos porque já não estavam no país e apresentou três manifestos de voo com os nomes de todos os presos entregues. Foi a primeira confirmação sobre o número e identidade dos detidos, até aí negados, e sobre a participação das autoridades quenianas na sua entrega à Somália.
O nome de Salim Awadh está numa das listas de passageiros. Saiu do Quénia em 27 de Janeiro de 2007. O voo é da companhia African Air Express. O destino: Mogadíscio. Awadh figura no número 26 da lista. A sua mulher é a seguinte. Houve três voos mais. No total, 85 passageiros, dos quais 19 erram mulheres e 15 crianças. Outras fontes, falam de mais de 100 pessoas entregues.
Da Somália levaram-no para a Etiópia. Ali foi interrogado durante três semanas por um americano, uma americana e um israelita. Acusavam-no de participar nos atentados de Mombasa. Quando lhes dizia que não sabia nada, gritavam-lhe que mentia. Gritaram-lhe tanto que durante algum tempo perdeu audição.
Numa entrevista telefónica, um funcionário do FBI confirmou à HRW que tanto agentes do FBI como da CIA tinham interrogado os detidos em Addis Abeba. O governo etíope só reconheceu ter debaixo de custódia 41 pessoas.
Durante muitas fases dos interrogatórios usaram as esposas e as crianças para exercer influência sobre os detidos, sugerindo que os iam magoar ou que elas tinham admitido que os maridos eram terroristas.
Por fim disseram-lhe que lamentavam, que era inocente e que o soltariam em duas semanas. Mas mantiveram-no preso um ano e meio mais, até 2 de Outubro de 2008, quando foi libertado juntamente com outros sete quenianos.
Tardam a fechar estas prisões. Com o mal dos outros podemos nós bem, não é?...
Fonte: El Mundo