Ficaram "incomodados" com o meu post de há seis dias sobre El Salvador? Porque não então mais uma viagem à Argentina? Por ali os ódios e os métodos eram os mesmos, mais refinados até, como tenho aqui escrito ao longo dos meses.
Desta vez a minha atenção cai sobre Carlos Horacio Ponce de Leon, ex-bispo de San Nicolás, Argentina, que os militares locais apodavam de "bispo vermelho", a quem não perdoavam o protagonismo na defesa dos que mais necessitavam, dos marginalizados. Mas foi a defesa dos perseguidos políticos que lhe ditou a sentença de morte. Foi assassinado através de um "acidente" de automóvel convenientemente montado em Julho de 1977, em plena ditadura militar.
Morreu quando se dirigia de San Nicolás até Buenos Aires, onde era suposto entregar, à Nunciatura Apostólica, dados sobre operários e sacerdotes desaparecidos. Não conseguiu. Provavelmente de pouco adiantaria já que a maioria dos seus pares afinavam com a ditadura.
Apesar de em assembleia plenária do episcopado, imediatamente a seguir ao golpe militar, ter denunciado a hostilidade e as humilhações a que era submetido e de ter sido um dos que mais insistiu na necessidade de um pronunciamento público, o episcopado não só o recusou como o deu a conhecer ao governo.
Trinta e dois anos depois a justiça argentina aguarda finalmente pelos resultados dos estudos que se estão a apurar sobre os seus restos mortais. É o actual pároco de cidade de Salto, e seu amigo, José Karaman que dá a conhecer que sempre saiu em defesa dos perseguidos políticos, precisamente numa região que desempenhou um papel central no projecto da ditadura, já que ali se concentrava uma boa parte da esquerda peronista e marxista.
Era uma figura clássica dessa nova igreja que tinha aberto as portas a outras ideias, ele que sabia desde criança o que era a pobreza, era filho de um taxista.
É o mesmo José Karaman que afirma que ele não se calava, sem necessidade de gritar, mas quando tinha de enfrentar o poder fazia-o. Karaman assegurou ter sido testemunha do momento em que Ponce de Leon anunciou o seu próprio fim: “ouvi-o em 4 de Abril de 1977. Tinha morrido um sacerdote de Rojas de uma enfermidade e olhando para o féretro disse-me "como invejo o padre Sanchez, pelo menos morreu de morte natural, eu não vou morrer de morte natural".
O bispo sabia que a sua defesa dos perseguidos políticos, dos detidos e dos desaparecidos por causas religiosas, sindicais e políticas ia ter um custo alto. Não se importou e a sua profecia cumpriu-se.
No dia do "acidente", Ponce de Leon levava a Buenos Aires uma série de pastas com informação sobre operários desaparecidos. Um dado importante, a informação que o bispo levava consigo quando teve o acidente desapareceu e a polícia impediu que a imprensa tirasse fotografias do veículo em encontrou a morte.
Outro dado importante, o chanceler da diocese, monsenhor Roberto Mancuso, que também era capelão da prisão local, não reclamou a documentação que o bispo levava e que envolvia o comandante do Primeiro Corpo, general Carlos Suarez Mason, ao coronel Clambor do regimento de Junin e ao tenente-coronel Saint Aman, a cargo do regimento de San Nicolás.
Importante também é o número de padres de esquerda mortos em acidentes de automóvel na Argentina da ditadura. Já com os activistas sindicais o método era outro. Aparecia todos os dias em San Nicolás o cadáver de um delegado operário atravessado pelas balas, invariavelmente.
Há quem normalmente me diga que estas coisas já se passaram há muito tempo, mas se bem repararem estão a repetir-se num qualquer ponto da América Latina, só este ano já atinge as cinco dezenas o número de sindicalistas e activistas assassinados na Colômbia. Nas Honduras o número de mortos, desaparecidos e encarcerados sobe a cada momento, no Peru idem aspas. Muitas das suas histórias só se conhecerão daqui a alguns anos, quando esses países encontrarem o seu caminho...
Fonte: APM