Apesar do que escrevi aqui, continuei a remoer, como é possível nos dias de hoje uma jornalista como Teresa de Sousa do jornal Público ter escrito que o jornalismo não deve “embaraçar os governos”?
Procuro, procuro e é mesmo o que me sai, tirando as honrosas excepções, é a conivência permanente com o poder que eu julgava dever ter desaparecido com o advento da democracia, aqui e em qualquer parte do mundo.
Talvez por isso, decidi trazer-vos aqui, via blogue do Miro, a homenagem a Eduardo Leite, o Bacuri, vítima da ditadura brasileira e que receberá, in memoriam, o título de Cidadão Paulistano, hoje às 19 horas, na Câmara dos Vereadores de São Paulo.
Trata-se de mais um dos casos de absoluta crueldade da repressão brasileira. Na madrugada da véspera de ser retirado do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social, criada para manter o controlo do cidadão e vigiar as manifestações políticas na ditadura pós-64 instaurada pelos militares no Brasil) para ser assassinado, a repressão entregou-lhe – na cela onde estava sozinho – um exemplar da "Folha da Tarde" que noticiava sua “fuga”.
A "Folha da Tarde" era o jornal que Otávio Frias, pai de Otávio Frias Filho, actual director de Redacção da "Folha" desde 1984, pôs ao serviço do esquadrão da morte durante os dois anos finais dos 1960 e que assim continuou até o final dos anos de 1970.
O assassinato de Eduardo Collen Leite, o “Bacuri”, é um dos mais terríveis dos que se tem notícia no Brasil, já que as torturas lhe foram infligidas duraram 109 dias consecutivos, deixando-o completamente mutilado. Quando o corpo foi entregue aos familiares estava sem orelhas, com olhos vazados e com mutilações e cortes profundos em toda a sua extensão.
Foi preso no dia 21 de agosto de 1970, no Rio de Janeiro, pelo delegado Sérgio Fleury e sua equipa, quando chegava a casa. Passou pelo Centro de Informações da Marinha (Cenimar) e pelo Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), onde foi visto pela ex-presa política Cecília Coimbra, já quase sem poder andar.
Do local da prisão, Eduardo foi levado a uma residência particular onde foi torturado. Os seus gritos e os dos seus torturadores chamaram a atenção dos vizinhos, que avisaram a polícia. Ao constatar de que se tratava da equipa do delegado Fleury, pediram apenas para que mudassem o local das torturas.
Após ser torturado na sede do Cenimar, no Rio de Janeiro, Eduardo foi transferido para o 41° Distrito Policial, São Paulo, cujo delegado titular era o próprio Fleury.
Novamente transferido para o Cenimar, Eduardo continuou a ser torturado até meados de Setembro, quando voltou novamente para São Paulo, sendo levado para a sede do DOI-Codi. Em Outubro, foi removido para o DOPS paulista, sendo encarcerado na cela 4 do chamado “ fundão” (celas totalmente isoladas).
Em 25 de Outubro, todos os jornais do País divulgaram a nota oficial do DOPS relatando a morte de Joaquim Câmara Ferreira (comandante da ALN), ocorrida em 23 de Outubro. Nesta nota, foi inserida a informação de que Bacuri havia conseguido fugir, sendo ignorado o seu destino.
Após a ditadura foi encontrado nos arquivos do Dops, a transcrição de uma mensagem recebida do Dops pela 2ª secção do IV Exército, assinada pelo coronel Erar de Campos Vasconcelos, chefe da 2ª Seção do II Exército, dizendo que foi dado a conhecer a repórteres da imprensa falada e escrita o seguinte roteiro para ser "explorado dentro do esquema montado”.
O tal roteiro falava da morte súbita de Câmara Ferreira após ferir a dentadas e pontapés vários investigadores. E mais adiante diz: “Eduardo Leite, o Bacuri, cuja prisão vinha sendo mantida em sigilo pelas autoridades, havia sido levado ao local para apontar Joaquim Câmara Ferreira (...) Aproveitando-se da confusão, Bacuri (...) logrou fugir (...) ”.
Estava evidenciado o plano para assassinar Eduardo Leite.
O testemunho de cerca de 50 presos políticos confinados nas celas do DOPS paulista (entre eles, o gaúcho Ubiratan de Souza) neste período prova que Eduardo jamais saíra da sua cela naqueles dias, a não ser quando era carregado para as sessões diárias de tortura. Eduardo era carregado porque não tinha mais condições de manter-se em pé, muito menos de caminhar ou fugir, após dois meses de torturas diárias.
O comandante da tropa de choque do DOPS, tenente Chiari da PM paulista, mostrou a Eduardo e a inúmeros outros presos políticos, no dia 25, os jornais que noticiavam a sua fuga.
Para facilitar a retirada de Eduardo da sua cela, sem que os demais prisioneiros do Dops percebessem, o delegado Luiz Gonzaga dos Santos Barbosa, responsável pelo cárcere do DOPS àquela época, exigiu a substituição total dos presos, e a remoção de Eduardo para a cela n° 1, que ficava defronte à carceragem e longe da observação dos demais presos. Seu nome foi retirado da relação de presos, as dobradiças e fechaduras de sua cela foram lubrificadas de forma a evitar ruídos que chamassem a atenção.
Os prisioneiros políticos, na tentativa de salvar a vida de seu companheiro, montaram um sistema de vigília permanente. Aos 50 minutos do dia 27 de Outubro de 1970, Eduardo foi retirado de sua cela, arrastado pelos braços, pela falta total de condições de pôr-se em pé, com o corpo repleto de hematomas, cortes e queimaduras, sob os protestos desesperados de seus companheiros.
Segundo testemunho de Ubiratan, todos os presos chegaram junto às grades e estendiam braços e mãos para cumprimentar ou simplesmente tocar em Bacuri, ao mesmo tempo que batiam com talheres e copos metálicos no ferro das grades numa demonstração de protesto pela iminente morte de um companheiro. Todos sabiam que Bacuri seria executado.
Eduardo não mais foi visto. Os carcereiros do DOPS, frequentemente questionados sobre o destino de Bacuri, só respondiam que ele tinha sido levado para interrogatórios num andar superior. Os policiais da equipa do delegado Fleury respondiam apenas que não sabiam; apenas o policial conhecido pelo nome de Carlinhos Metralha é que afirmou que Eduardo estava no sítio particular do delegado Fleury. Tal sítio era usado pelo delegado e sua equipa para torturar os presos considerados especiais ou os que seriam certamente assassinados e, por isso, deveriam permanecer escondidos.
Em 8 de Dezembro, 109 dias após sua prisão, e 42 dias após seu sequestro do Dops, os grandes jornais do País publicavam uma nota oficial dando conta da morte de Eduardo “num tiroteio nas imediações da cidade de São Sebastião”, no litoral paulista. Era evidente o conluio entre a repressão e a media, nesta farsa montada para eliminar Eduardo Leite.
A história de Eduardo Leite permite-nos entender melhor as cumplicidades entre jornais, jornalistas, poder, repressão. À luz da história de Eduardo Leite, ou de tantas outras que por cá se passaram, aí sim, talvez se perceba o comentário de Teresa de Sousa.