As televisões nacionais e internacionais têm dedicado os últimos os últimos dias a lembrar até à exaustão o 11 de Setembro de 2001, fazem bem, apesar do exagero das horas e horas de emissão.
Como já disse no post anterior houve outros 11 de Setembro em que a besta esteve igualmente presente, quiçá de forma ainda mais devasta-dora. Não consegui encontrar nessas horas todas uma referência ao 11 de Setembro de 1973, esse que da memória de alguns se vai esvaindo ou convenientemente atirado para o sótão do esquecimento.
Recupero aqui um texto de Ariel Dorfman escritor chileno, nascido na Argentina, com nacionalidade Norte-Americana e que foi conselheiro cultural de Salvador Allende entre 1970 e 1973. O texto foi publicado aquando da visita de Barack Obama ao Chile em Março deste ano. Se aqueles que nos recordam através das imagens a tragédia de 2001 recordassem igualmente a de 1973 fariam certamente um serviço muito maior, afinal de contas a besta continua à solta, alimentada umas vezes odiada outras tantas:
"Quando Barack Obama desembarcar no Chile para uma visita de 24 horas, algo crucial faltará em sua agenda. Haverá mariscos suculentos, discursos elogiosos à prosperidade do Chile, acordos bilaterais e encon-tros com poderosos e celebridades, mas não há planos, sem dúvida, de que o presidente dos Estados Unidos tome contacto com o que foi a experiência fundamental da recente história chilena, o trauma que o povo do meu país sofreu durante os quase dezassete anos do regime do general Augusto Pinochet.
E, no entanto, não seria impossível para Obama ter conhecimento de uma pequena amostra do que foi a aflição do Chile. A poucas quarteirões do Palácio Presidencial de La Moneda, onde será recebido por Sebastian Piñera, 120 pesquisadores dedicam-se assiduamente a construir uma lista definitiva das vítimas de Pinochet para que possa ser feita alguma forma de reparação. Esta é a terceira tentativa desde que terminou a ditadura, em 1990, para enfrentar as perdas massivas que ocasionou. Duas comissões estabelecidas oficialmente investigaram uma imensa quantida-de de casos de tortura, execuções e prisão política, mas foi ficando claro, à medida os anos passavam, que inumeráveis abusos de direitos humanos continuavam sem identificação. E, de facto, a pesquisa mais recente recebeu 33 mil solicitações adicionais, horrores que ainda não tinham sido registados.
Ainda que Obama não tenha direito a ler nenhum dos relatórios confidenciais acerca daqueles casos, alguns minutos roubados de seu estrito calendário para falar com alguns dos homens e mulheres que realizam essas pesquisas, o informariam mais sobre a escondida agonia do Chile do que mil livros e reportagens.
Poderia, por exemplo, conversar com a pesquisadora chamada Tamara. No dia 11 de Setembro de 1973, dia em que Salvador Allende foi derrubado, o pai de Tamara, um dos guarda-costas de Allende, foi detido, sem que jamais se soubesse seu paradeiro posterior. Eu trabalhava em La Moneda na época do golpe militar e salvei minha vida em função de uma cadeia de coincidências milagrosas, mas o pai de Tamara não teve tanta sorte, assim como não tiveram vários bons amigos meus, cujos corpos ainda estão sem sepultura.
Ou Obama poderia auscultar os olhos de um advogado que conheço, que foi sequestrado uma tarde e torturado durante semanas antes de ser deixado uma noite numa rua desconhecida, tão longe de seu lar que imediatamente preso de novo por romper o toque de recolher. Ou Obama poderia conversar com uma antropóloga que teve que ir para o exílio por 14 anos, perdendo o seu país, sua profissão, seu idioma, e cujo retorno ao Chile foi tão angustiante como seu desterro original, posto que seus filhos, em virtude da prolongada ausência do país onde nasceram, decidiram permanecer no estrangeiro, o que significa que essa família estará separada para sempre.
Caso o presidente Obama se sinta mais cómodo conhecendo lugares em vez de seres humanos de carne e osso, poderia familiarizar-se com Villa Grimaldo, uma casa de tormentos onde agora se ergue um centro para a paz, ou reservar dez minutos para visitar o Museu da Memória, onde há exibições que denunciam o terrível passado do Chile.
Uma razão pela qual faz sentido que Obama vislumbre, ainda que através de um vidro escuro, nossa vasta e devastadora dor, é que os norte-americanos foram, em grande parte, responsáveis por aquela tragédia. Washington ajudou, estimulou e financiou a queda do governo democra-ticamente eleito de Allende e a trajectória ditatorial de Pinochet. No momento em que a revolta no Egipto, como em tantos outros países que se levantam contra o autoritarismo, lembra ao mundo as consequências de sustentar regimes brutais, seria instrutivo para um presidente tão inteligente e humanitário como Obama ver, de perto e pessoalmente, alguns dos homens e mulheres que foram destruídos por essa política.
O Chile também oferece um exemplo do quão difícil é confrontar os crimes contra a humanidade, difícil e necessário. Em meu país aprendemos que se nossa comunidade, nosso povo inteiro, não olha de frente para o passado aterrador e arrasta seu pesar para a luz, se os responsáveis não recebem castigo, corremos o risco de que nossa própria alma se corrompa.
É uma lição que Obama e seus compatriotas deveriam impor a si mesmos. Dois anos depois de sua posse, Guantánamo segue aberta e não há sinal de que vá ocorrer um julgamento das violações dos direitos humanos sob a administração Bush nem tão-pouco uma insinuação de que será pedido perdão às vítimas. Uma comissão norte-americana que tome como modelo esta que foi criada em Santiago poderia dar um primeiro passo na direcção de um ajuste de contas que, como bem sabemos nós os chilenos, não deveria ser adiada de forma indefinida.
Por mais importante que essa experiência fosse para Obama, há outra que seria ainda mais significativa. À noite, ele vai jantar no mesmo Palácio Presidencial onde Salvador Allende morreu muitos anos atrás, em defesa do direito de seu povo escolher seu próprio destino. Allende está enterrado num cemitério não muito longe de onde a elite do país estará brindando pela amizade eterna entre Chile e os Estados Unidos. Em 1965, durante uma viagem notável ao Chile, Bobby Kennedy quebrou seu escrupuloso protocolo e se encontrou com mineiros explorados e estudantes universitários hostis. Ele mergulhou nos problemas do país para conhecê-los, para perguntar como chegar a uma solução. E se Obama decidisse seguir o exemplo de Kennedy – seu ídolo, Bobby Kennedy – e mudasse o roteiro para fazer algo sem precedentes como uma visita ao túmulo de Allende? Se ele simplesmente parasse neste lugar, ficasse de pé diante dos restos de quem foi, como ele, um presidente eleito por seu povo, e dedicasse um par de minutos solitários?
Não seria imprescindível que pedisse perdão ou expressasse remorso pela intervenção dos Estados Unidos nos assuntos internos do Chile, nem por ter sustentado Pinochet durante tanto tempo. Bastaria esse gesto singelo. Essa homenagem a um presidente que entregou sua vida lutando pela democracia e a justiça social mandaria uma mensagem a América Latina e a todo o planeta que seria mais eloquente que cinquenta discursos retóricos. Seria um sinal de que talvez seja mesmo possível uma nova era das relações entre os Estados Unidos e seus vizinhos, ao sul do rio Bravo, que o passado tão amargo e injusto nunca mais há-de voltar, nunca, nunca mais."