Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Salvo-conduto

A erva daninha cresce todos os dias

A erva daninha cresce todos os dias

Salvo-conduto

23
Set08

Os sapatos de Sammy Gitau

salvoconduto

Sammy Gitau é uma coisa pouco frequente: um filantropo, um filósofo e um maestro que se fixa em cada mínimo detalhe da sua vida diária. O trabalho de Sammy, no duríssimo bairro de Mathare, em Nairobi, onde nasceu, baseia-se em dois infalíveis princípios: a generosidade e a amabilidade.

"Creio que o mundo está demasiado obcecado com os direitos humanos e esqueceu-se da dignidade humana. Oferecer sapatos é paternalista. Prefiro caminhar descalço do que ser humilhado dessa forma".

Isto ouviu-o um inglês chamado Alex Walford, que trabalha para a União Europeia e contribuiu de maneira fundamental para proporcionar a Sammy os quatro contentores que formam o Centro de Recursos Comunitários de Mathare, um dos quais Sammy utiliza como alojamento para si e para a família. Um dia, em 2005, Walford lembrou-se de lhe perguntar: "Sammy, que queres tu? Que gostarias de fazer por ti?". Sammy confessou o sonho que transportava no seu interior desde há oito anos, desde que tinha descoberto um folheto da Universidade de Manchester num caixote do lixo. Disse que o que mais queria era ir para a universidade fazer um curso de pós-graduação sobre o que tinha lido, desenvolvimento internacional.

Walford, claramente contagiado, em parte, pela fé louca de Sammy, contactou o catedrático que dirigia o curso em Manchester, um americano chamado Pete Mann. "Alguma vez pensou em aceitar uma inscrição de alguém que não tem nenhum título? Perguntou-lhe. "Já aconteceu", respondeu Mann. "E alguém que não fez o ensino secundário?". Mann deteve-se um instante e respondeu: "Conte-me mais".

Com a bênção entusiasta de Mann, obteve uma bolsa que não só cobria a matrícula como também os gastos de alojamento. "Todos os que tinham duvidado de mim em Mathare tiveram que engolir as suas palavras", recorda Sammy sorridente. "De repente, todo o mundo estava orgulhoso de mim".

No entanto, poucas semanas antes da data em que devia voar para Inglaterra, um burocrata meticuloso no consulado britânico de Nairobi bloqueou-lhe o seu pedido de visto. "Suponho que é compreensível, dado que, com as credenciais que tinha, àquele tipo devia  parecer-lhe mais provável que a minha verdadeira intenção era ir para Inglaterra trabalhar ilegalmente, mas deixou-me destroçado. E o pior foi que tinha falado com as pessoas Mathare. O meu sonho tinha-se convertido no sonho deles, e tinha-os decepcionado".

Walford aconselhou Sammy a não se dar por vencido sem lutar. Apelaram para um tribunal em Inglaterra que revogou a decisão do funcionário consular. Mas então surgiu outro obstáculo. A bolsa escolar continuaria válida, mas já não era possível cobrir os custos de alojamento de Sammy em Manchester. Walford tornou a empenhar-se e conseguiu que amigos e conhecidos seus se comprometessem a dar dinheiro e inclusive disse aos convidados da sua festa de aniversário que, em lugar de lhe darem um presente, fizessem dádivas para a causa de Sammy.

Trabalhou com uma dedicação quase fanática, desprezando os excessos borguistas de alguns dos seus companheiros e impulsionado pelo facto de saber que estava a lutar não só por ele mas também por um povo. Ao fim de 18 meses, não só obteve o título, com toda a cerimónia da toga e barrete, como um distinção pela sua tese de 16.000 palavras.

Isto foi em Dezembro do ano passado. Agora está de novo em Mathare, a lutar para melhorar as perspectivas dos jovens. Os seus patrocinadores, Pete Mann y Alex Walford, crêem que o aguardam grandes coisas. Mas, por agora, só quer levar à prática a sua tese de pós-graduação, que é penetrar nas mentes ds seus vizinhos, idealizar formas de aproveitar o seu talento, acabar com a enorme vergonha, como ele a define, do desperdício de potencial humano que determina grande parte de África.

Não acredita que as ONG estrangeiras - as ONG clássicas, diz ele, que levam caridade e projectos pré-concebidos ao continente, e para as quais trabalhou no passado - sejam a solução. "O nosso centro de recursos de Mathare é uma  organização que nasce desde baixo; o inconveniente da maioria das ONG - e em Mathare funcionam 300 - é que querem controlar tudo desde cima. Quanto mais dinheiro gastam em ti, mais querem controlar-te. E o mal disso é que as pessoas, acima de tudo, querem que as tratem com respeito; querem ser donos do seu desenvolvimento, que não sejam os outros, por muito boas intenções que tenham. Por desgraça descobri que, às vezes, algumas pessoas que crêem que estão a fazer o bem, na realidade estão a fazer o mal".

Sammy explica o que quer dizer com a parábola dos sapatos. "Uma ONG vem e oferece sapatos às crianças. Fazem fotografias com os sapatos novos. Muito bem. Mas os sapatos gastam-se, ou tornam-se pequenos. O problema é que a única coisa que abordam é o sintoma e, três anos depois, a ONG vai à comunidade e sente-se enganada porque, em segredo, as pessoas esperavam que a ONG as deixassem propor as suas próprias ideias e lhes dessem ajuda económica para resolver os seus problemas. Necessitamos ajuda económica, certo, mas dirigida para as necessidades que nós próprios temos que especificar. Se a ONG faz tudo, as pessoas tornam-se passivas e isso não serve de nada".

"Creio que o mundo está demasiado obcecado com os direitos humanos e esqueceu-se da dignidade humana. Oferecer sapatos é paternalista. Prefiro caminhar descalço que ser humilhado dessa forma. Talvez demore um pouco em poder comprar os meus próprios sapatos, mas, quando o fizer, escolherei os que quero, e cuidarei deles porque os valorizarei como fruto dos meus esforços".

 

Fonte: El País

1 comentário

Comentar:

Mais

Comentar via SAPO Blogs

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Este blog tem comentários moderados.

Este blog optou por gravar os IPs de quem comenta os seus posts.

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2014
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2013
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2012
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2011
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2010
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2009
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2008
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D