Cão de guarda
Chamava-se Nero, todo preto e vira-lata genuíno, via o mundo através das grades do portão do quintal que era só seu, os donos davam-lho em toda a extensão como recompensa por lhes guardar a casa. Os meninos que não eram do Huambo cismavam com ele e constantemente o apedre-javam, ladrava mas aguentava, as grades do portão refreavam-lhe outros ímpetos, repetidamente, dia após dia, as pedras caíam-lhe em cima arre-messadas por aqueles meninos que recusavam sentar-se à volta de qualquer fogueira e nem sequer eram do Huambo.
Um dia os patrões do Nero, vá-se lá saber porquê, deixaram o portão fora do trinco, não tardou em descobrir que o mundo estava mais perto, paciente aninhou como um leão à espera da presa. Os meninos que não eram do Huambo nesse dia até se atrasaram, mas os donos, vá-se lá saber porquê, também, vinham como de costume com os bolsos e a mala cheios de pedras, mal tiveram tempo de arremessar a primeira, o Nero rugiu que nem uma fera e saltou como um leão, abocanhou tudo o que pode, as carnes eram tenras, nunca o hospital da Misericórdia costurou tanta nalga aberta.
Chegaram os donos e o Nero espreguiçava-se ao comprido na porta dos fundos, de vez em quando lambia o lombo no exacto sítio onde no dia anterior levara a vacina contra a raiva. Era preto o Nero, era vira-lata, desapareceu dois dias depois.